MODA: Misci afirma a autovalorização da cultura e da produção latinas como chave para o reconhecimento do que é feito na América Latina na coleção "Valor Latino"
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Consolidando uma imagem cada vez mais global sem perder de vista o que é genuinamente brasileiro, a marca de Airon Martin reimagina referências latinas sobre seu design apurado para uma coleção que é um manifesto estético
"Meu cliente não é só quem consome meu produto. Meu cliente também é quem consome minha ideia, ideia de Brasil", afirma o mato-grossense Airon Martin, diretor criativo e fundador da Misci, marca de destaque da atual geração da moda brasileira por ter no centro de sua identidade a atenção ao processo do design em si, o encaixe fluido e complexo de forma, função, estética e possibilidades de matéria-prima, ao mesmo tempo em que materializa através dele a união de elementos culturais e sociais do contexto continental. Nisso, a marca busca gerar não só impactos estruturais através do segmento em que está, mas também afirmar pontos de vista na sociedade. A ideia de Brasil de Airon passa, inevitavelmente, pela força da cultura e economia criativa como propulsora do reconhecimento e realização do potencial do país, e ela cresce ainda mais na atual coleção, "Valor Latino". Para além de tudo que é contido pelas fronteiras do Brasil, o criador propõe um olhar de valorização para a América Latina. Mas não em tom utópico ou romantizado. Aliás, ao contrário: a proposta é uma provocação, uma crítica e um chamado urgente contra visões que subestimam essa parte do mundo e reforçam sua permanência num lugar de exploração pelos países centrais.
O ponto de partida da coleção e de seu desfile é o retrato do latinoamericano como o "corno", o que contextualiza a falta de valor atribuído ao parceiro, que aqui são os países da América Latina. Esse personagem não enxerga a riqueza da cultura e da identidade de sua região, e por isso consente que ele seja subjugado. Assim, na visão que a Misci traz, esse cidadão é traído por desvalorizar o que tem — e isso aparece na coleção em elementos na forma de chifre. A estamparia e as texturas, recursos que a marca sempre trabalha com mais relevância em suas coleções, contam a história dos diferentes capítulos de "Valor Latino" e as provocações que eles trazem. Um destaque entre os tecidos de jacquard é o que reproduz o efeito de uma raspadinha, e remete à sorte que nem todos têm – uma crítica à noção equivocada de meritocracia que coloca o esforço e o empenho como o caminho para as conquistas, o que, numa América Latina marcada pela desigualdade, não é suficiente. Ganham novas dimensões nas estampas elementos típicos do continente, como a maxipipoca, que faz referência ao milho, presente não só no Brasil como também nos Andes. As estampas também aparecem sobre texturas de jacquard, e a sua mistura forma um um único significado. Um exemplo é o jacquard de cor única que desenha as zonas de desmatamento no Brasil. Vindo da coleção Mátria Brasil, ele agora recebe uma impressão que gera uma imagem de reflorestamento, mostrando o resgate da latinidade como forma de reparação do que foi explorado.
Nos sapatos, é usada uma matéria-prima de baixo impacto trazida para Misci pela pesquisa consistente de Airon nesse aspecto, sempre ligada à priorização de materiais renováveis. O biocouro BeLeaf, material desenvolvido a partir da planta tropical orelha-de-elefante, fornecida por fazendas sustentáveis e áreas de reflorestamento brasileiras. Ele aparece em diferentes cores, liso ou texturizado. Não à toa, a Heineken é uma das patrocinadoras oficiais do desfile. A marca também tem a sustentabilidade como um de seus principais direcionais e se conecta com o evento por meio da plataforma Green Your City - uma série de iniciativas que trazem o olhar da sustentabilidade para a vida noturna, a cena cultural e para a relações com as cidades. A plataforma tem compromissos firmados em quatro diferentes pilares: energia verde, economia circular, cidades mais verdes e consumo responsável.
No construir dessa narrativa através da coleção, que engloba processos criativos, matérias-primas brasileiras e sustentáveis, a grande referência de Airon é o cineasta Glauber Rocha e o movimento liderado por ele na década de 60, o Cinema Novo. Com filmes que retratavam o Brasil fora do clichê, além de uma nova estética visual, Rocha e seus contemporâneos propunham questionamentos sobre como o país e sua cultura eram percebidos trazendo à tona facetas então pouco percebidas. "O trabalho do Glauber sempre me inspirou na comunicação. Assim como ele usava o cinema para criar uma cultura e trazer questões sociais, eu busco trazer isso para a moda", diz.
A produção criativa de Airon, além de propor reflexões, mantém em perspectiva contribuir com avanços estruturais para a valorização do que é feito no Brasil. Isso é visto na pesquisa de matérias-primas da marca, que trabalha junto à indústria têxtil nacional para desenvolvimento de materiais exclusivos e acaba impulsionando as tecelagens a ampliar e reativar seu maquinário. Um resultado disso são os tecidos de jacquard da coleção, desenvolvidos pela Innovativ Tecidos, parceira do desfile. Os diferentes tipos de seda, lisa ou estampada, também são da indústria têxtil nacional, com destaque para o crepe de cetim e o chiffon, além da tricoline de algodão que estrutura as camisetas recortadas.
Ainda que não seja possível fabricar determinados itens no Brasil, Airon busca valorizar a expertise nacional: o modelo de óculos da coleção, com armação em metal, é resultado de uma collab com o designer brasileiro Maustein, aparecendo em diferentes cores.
As silhuetas permanecem limpas, sejam fluidas ou estruturadas, permeadas pelos recortes que já são marca registrada das peças da Misci. Dentre as peças estruturadas, as em modelagem de alfaiataria ganham destaque, sempre em tecidos nobres. Além dos jacquards e estampas, a coleção de 44 looks conta com outra textura que chama atenção: o couro plissado. O efeito canelado irregular, que já era trabalhado pela marca no tricô, é trazido para o couro nesta coleção, especialmente em camisas. Trata-se de couro de origem animal, mas o material tem rastreabilidade e foi obtido através de práticas alinhadas com a proteção animal.
Airon mostra que a imagem de moda brasileira pode e deve ser cada vez mais global e não caricata, sem deixar de trazer a identidade nacional. Não à toa, o local do desfile torna esse aspecto ainda mais potente. "Valor Latino" será mostrada na Pina Contemporânea, prédio recém-inaugurado da Pinacoteca do Estado de São Paulo como parte de seu complexo, dedicado à produção artística contemporânea brasileira. O acervo desta nova ala do museu abriga obras que traduzem uma visão múltipla e conectada com o mundo do que é o Brasil e sua produção criativa, como o trabalho de Tunga. É em torno das obras dele, nome pioneiro e dos mais reconhecidos da arte contemporânea brasileira no exterior, com participação nas bienais de Veneza e Havana e na respeitada Documenta de Kassel, além de ter sido o primeiro artista contemporâneo do mundo a expor no Louvre, que o desfile acontece. A Misci, nesta coleção, afirma o orgulho latinoamericano e a urgência de valorizar o que é realizado no continente. Mais uma vez, a marca busca redefinir os limites da moda, propondo reflexões sobre questões sociais e impulsionando mudanças estruturais em seu segmento e a consciência da valorização da identidade social, sem perder de vista o DNA e a qualidade de suas criações.
SERVIÇO Evento: Desfile Misci - "Valor Latino" Data e Horário: Dia 13/06/23, às 11h Local: Pina Contemporânea - Av. Tiradentes, n. 273 - Luz, São Paulo - SP
FICHA TÉCNICA Direção Criativa: Airon Martin Styling: Thiago Biagi Beleza (Maquiagem): Rodrigo Costa Beleza (Cabelo): Carlos Cezário Direção de Desfile: Augusto Mariotti Produção Executiva: Estúdio Pastel Trilha Sonora: DJ Ubunto Patrocinadores: Heineken, Shopping Cidade Jardim Apoio: In Mode, Innovativ Tecidos, Italytex, São Paulo Fashion Week, RC Beauty e Tangle Teezer
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