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Foto: Márcio Rodrigues |
Quando publicou Tempos Difíceis, em 1854, o escritor britânico Charles Dickens utilizou a história de personagens como Blackpool para descrever as mudanças econômicas e sociais vividas pela Inglaterra do século 19, quando a criação da máquina a vapor aumentou a produção de mercadorias de modo exponencial.
Com a tecnologia veio uma nova relação econômica, fundamentada em uma troca: os operários cediam seu tempo e a força de trabalho enquanto os donos das fábricas ofereciam um salário pago mensalmente. Negociação que não era das mais justas, se contar o expediente de 14 horas por dia, o ambiente infestado pela fumaça do carvão que alimentava os teares mecânicos, o risco de morrer com a má operação da máquina e, claro, a baixa remuneração oferecida: uma ínfima parte dos ganhos do patrão.
O problema é que, mesmo após mais de 160 anos da publicação da obra, a história de Stephen Blackpool ainda não se tornou assunto restrito às discussões acadêmicas de literatura. Shima Akhter tinha 12 anos quando saiu de seu vilarejo para morar com uma tia em Daca, capital deBangladesh, país localizado no Sudeste Asiático com população superior a 150 milhões de habitantes.
Ela era uma entre os 4 milhões de habitantes do país que trabalham na confecção de roupas para o mercado externo — de acordo com a Organização Mundial do Comércio(OMC), Bangladesh é o segundo maior exportador de vestuário do mundo, com um volume de US$ 28 bilhões em transações, e 85% da mão de obra é formada por mulheres. Com um salário inferior a US$ 3 por dia, Shima e outros colegas uniram-se para pedir melhores condições de trabalho e entregaram uma lista de propostas aos supervisores da fábrica.
A negociação entre trabalhadores e patrões não demorou muito a ser resolvida: os gerentes fecharam as portas da confecção, reuniram quase 40 pessoas e atacaram Shima e seus colegas utilizando cadeiras, pedaços de pau e tesouras. A história da trabalhadora de 23 anos foi relatada no documentário True Cost, dirigido pelo norte-americano Andrew Morgan.
No filme, a cadeia produtiva da moda é destrinchada para explicar como o poder cultural das roupas é utilizado por grandes redes varejistas para estimular o consumo desenfreado e aumentar suas margens de lucro enquanto produzem peças a baixo custo por meio de força de trabalho barata.
Desde a década de 1990, quando a Nike foi acusada de utilizar trabalho infantil em fábricas na Ásia, a falta de ética no processo de fabricação de mercadorias por grandes empresas é discutida pela sociedade. O problema é que o questionamento costuma resistir apenas até a primeira promoção imperdível no shopping.
“A roupa não fala, mas ela transmite uma informação: ao vestir determinada peça, você pode ser reconhecido como uma pessoa bem informada ou que tem dinheiro para comprar, por exemplo”, afirma João Braga, professor de História da Moda da Faculdade Santa Marcelina, em São Paulo. “Como um fenômeno capitalista e ocidental, o desenvolvimento da moda também surge com o conceito de prestígio e ascensão social.”
Por falar em capitalismo, as mudanças que aconteceram no sistema a partir da década de 1980, com a descentralização da produção e negociações feitas em escala global, são a principal razão para entender como a indústria da moda criou um novo padrão de consumo, sustentado com base em um tripé: baixo custo de produção, rápido escoamento da distribuição e preços atrativos — anualmente, cerca de 80 bilhões de roupas são vendidas em todo o mundo, média superior a 11 peças por habitante da Terra.
Com mais de 6,6 mil lojas distribuídas em 88 países e faturamento em vendas que chega a quase US$ 15 bilhões, a rede espanhola Zara é uma das empresas precursoras da fast fashion, nome dado a essa nova maneira de consumir a moda.
Criada em 1975 por Amancio Ortega, dono de uma fortuna de US$ 67,1 bilhões e quarto homem mais rico do mundo, a marca inovou ao adaptar para a indústria têxtil as lições da montadora japonesa Toyota, que desenvolveu um sistema de logística para eliminar os grandes estoques das fábricas.
"A Zara produz 11 mil modelos diferentes de roupas por ano e renova sua vitrine de modo permanente, esse é o seu segredo de marketing”, explica Roberto Minadeo, doutor em Engenharia de Produção pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor de um estudo sobre a empresa espanhola.
Se as grifes tradicionais europeias lançavam coleções de roupas de acordo com as estações do ano, as marcas de fast fashion despejam no mercado novos produtos a cada semana. “A Zara trabalha com o que há de mais atual na moda: assim que ocorre um desfile ou tão logo alguma celebridade aponta para uma possível demanda, ela já coloca produtos com uma estética similar em suas lojas”, diz Daniela Delgado, consultora de moda e marketing.
Tudo isso a preços relativamente acessíveis para uma parcela considerável da sociedade:enquanto um vestido da grife francesa Dior custa por volta de R$ 9 mil, um modelo similar da Zara sai por apenas R$ 300 — na Europa, peças vendidas pela marca espanhola chegam a custar € 10 (ou R$ 44).
O ritmo de comercialização imposto por essas redes de varejo causou impacto em empresas tradicionais no ramo. Fundada no século 19 e fabricante de itens de luxo, a britânica Burberryafirmou neste ano que disponibilizaria suas novas coleções logo após a realização dos desfiles, tendência acompanhada por outras grifes, como Tommy Hilfiger, Versace e Marc Jacobs.
“As pessoas costumavam ir uma vez por ano às lojas, mas então inventaram duas, três, quatro novas coleções, e agora o fast fashion renova suas prateleiras com novidades todos os dias”, afirma Isabella Prata, fundadora da Escola São Paulo, que organiza cursos sobre economia criativa. “As marcas querem que a experiência de visitar uma loja se repita, para aumentar a chance de compra de um novo produto.”
E com esse mercado de cores, texturas e novidades, não surpreende que você se esqueça da história de Shima Akhter. Mas algumas tragédias são impossíveis de ignorar: em abril de 2013, por exemplo, um prédio de oito andares desabou na periferia da capital de Bangladesh, matando 1.133 pessoas. Conhecido como Rana Plaza, o edifício abrigava cinco fábricas de confecção de roupas e empregava mais de 2 mil trabalhadores, que produziam itens para empresas como Walmart e Primark — o salário mensal era de aproximadamente R$ 360, com jornadas de trabalho de 10 horas durante seis dias da semana.
Pouco antes do desabamento, os funcionários relataram o aparecimento de rachaduras nas paredes do prédio aos gerentes, mas eles decidiram seguir trabalhando normalmente. “Para diminuir os custos da produção, as grandes corporações descentralizaram sua produção”, destaca Marcela Soares, professora da Escola de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense (UFF). “Ao longo dos anos 1980, essa pulverização se deslocou para países em que não existiam leis trabalhistas ou muita tradição sindical.”
Meses após o desastre no Rana Plaza, um incêndio em outra confecção de Bangladesh causou a morte de nove trabalhadores. Pressionadas pela opinião pública, as grandes marcas de fast fashion afirmaram que controlariam a sua produção de maneira mais cuidadosa. Por sua vez, a Justiça de Bangladesh iniciou, em janeiro deste ano, um processo legal contra Sohel Rana, dono do Rana Plaza, além de 40 envolvidos na tragédia, como gerentes e oficiais do governo que sabiam dos problemas estruturais do edifício. Depois do julgamento, os réus poderão ser condenados à prisão perpétua.
De acordo com o documentário True Cost, na década de 1960, 95% das roupas vendidas nos Estados Unidos eram fabricadas em território norte-americano, enquanto hoje esse percentual não passa de 3%. Enquanto a produção é deslocada para outros locais, as empresas continuam com seus quartéis-generais nos países de origem, responsáveis pela idealização de novas coleções, análise do controle de qualidade e, claro, arrecadação dos lucros.
Entre as cinco maiores nações exportadoras de vestuário em 2014, quatro estão localizadas noSudeste Asiático: a China, com US$ 173,4 bilhões em exportações, ainda lidera o ranking por conta das zonas econômicas especiais criadas pelo Partido Comunista Chinês para impulsionar o desenvolvimento industrial.
Ao longo dos anos, no entanto, o crescimento do país ocasionou um aumento gradual dos salários e das condições de trabalho. O resultado foi que as grandes confecções se mudaram imediatamente para países como Bangladesh, Vietnã e Camboja, onde a competição por postos de trabalho mantinha os salários baixos e, consequentemente, as margens de lucro mais altas — em 2015, oficinas de roupas também se expandiram para a África, com a instalação de fábricas na Etiópia.
Em artigo publicado na revista norte-americana Jacobin, a pesquisadora Anna Plowmanassocia o aumento das fábricas de Bangladesh às mudanças climáticas provocadas pelo aquecimento global: inundações nas plantações e a degradação do solo obrigaram os camponeses a migrar para a capital do país em busca de uma nova ocupação, como foi o caso de Shima Akhter.
E se a jovem foi agredida por seus patrões depois de pedir melhores condições de trabalho, pior sorte tiveram os manifestantes que, em janeiro de 2014, protestavam pelo aumento do salário mínimo em Phnom Pehn, capital do Camboja. Os funcionários do setor têxtil do país asiático pediam uma remuneração de pelo menos US$ 160 mensais, enquanto o governo oferecia US$ 95. A polícia disparou munição real contra os trabalhadores, ocasionando em três mortes.
De acordo com dados divulgados pela Associação Brasileira do Varejo Têxtil (ABVTEX), os pontos de vendas de roupas no Brasil são pulverizados: pouco mais de 20% do mercado é controlado por grandes redes varejistas, enquanto cerca de 30% dos vendedores vivem na informalidade, como sacoleiros e camelôs. Quase metade do mercado, portanto, é formada por comércio de bairro e redes locais. Nos últimos anos, grandes empresas de fast fashion, como H&M e Uniqlo, cogitaram abrir lojas no Brasil, mas o alto custo de operação e a competição com outras multinacionais fizeram com que os executivos das companhias mudassem de ideia.
De acordo com informações da Associação Brasileira da Indústria Têxtil (Abit), quase 85% do vestuário consumido no país é produzido por fábricas instaladas aqui mesmo. Com faturamento de US$ 55,4 bilhões em 2014, o Brasil é o quarto maior produtor de roupas do mundo, gerando 1,6 milhão de empregos — 75% da mão de obra é composta de mulheres.
“Esse é um setor estratégico: diga uma cidade do país em que não tenha pelo menos uma lojinha para vender roupas”, afirma Rafael Cervone, presidente da Abit. De fato, o setor conta com 160 mil postos de venda espalhados pelo Brasil, emprega quase 1,5 milhão de pessoas e vendeu 6,5 bilhões de peças em 2014.
Porém, apesar da importância para a economia nacional, o setor também sofre do mal da equação “produção rápida + preço baixo”. Em janeiro deste ano, o Tribunal Superior do Trabalho condenou uma confecção ligada ao grupo Riachuelo a pagar uma indenização no valor de R$ 10 mil a uma funcionária que ganhava um salário de R$ 550 e cumpria metas diárias como a colocação de 500 elásticos em calças por hora ou a costura de 300 bolsos no mesmo período.
Por conta do ritmo de trabalho, a funcionária, do Rio Grande do Norte, sentia dores nas mãos e nos braços, mas era medicada com analgésicos na enfermaria da empresa e obrigada a retornar ao trabalho. Ela também recebeu o direito a uma pensão mensal por conta dos prejuízos causados pelas repetições de movimentos durante a confecção das calças.
Casos mais graves envolvendo grandes marcas também foram registrados quando, em 2011, uma inspeção conduzida pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) encontrou imigrantes bolivianos e peruanos expostos a condições análogas à escravidão trabalhando em uma oficina de roupas que produzia peças para a Zara na cidade de São Paulo.
Além das longas jornadas de trabalho, que chegavam a até 16 horas por dia, os trabalhadores precisavam pedir autorização para sair de casa. Em depoimento à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) instaurada pela Assembleia Legislativa de São Paulo em 2014 para discutir o trabalho escravo contemporâneo, a Zara admitiu a contratação de fornecedores irregulares para realizar os serviços de confecção.
“O objetivo, ao utilizar mão de obra escrava, é a maximização do lucro e a obtenção de vantagem em relação aos concorrentes”, afirma o procurador do trabalho Rafael Garcia Rodrigues, que está à frente da Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo(Conaete), iniciativa do Ministério Público do Trabalho (MPT). A legislação brasileira é considerada uma das mais avançadas do mundo no combate ao trabalho escravo contemporâneo, e caracteriza esse crime partindo de quatro situações: jornada exaustiva, servidão por dívida, trabalho forçado e condições degradantes no ambiente laboral.
De acordo com dados do MPT, dos 14 termos de ajustamento de conduta realizados em 2015 em São Paulo por condições análogas à escravidão, dez eram referentes a empresas do setor têxtil — nesses termos, os autuados se comprometem a resolver o problema ou compensar danos e prejuízos já causados. “Verificamos que não adianta responsabilizar a última camada da cadeia produtiva, já que aquele dono de uma oficina da periferia de São Paulo não é quem realmente lucra com a exploração”, diz a procuradora do trabalho Christiane Vieira Nogueira, vice-coordenadora do Conaete. “Também é necessário responsabilizar as grifes, que exercem um controle muito grande no modelo de produção.”
Em julho de 2014, o MPT protocolou uma ação civil pública que determinava multa no valor R$ 10 milhões contra a marca M.Officer, depois de uma investigação que percorreu diferentes pontos da cadeia produtiva de roupas da empresa. Em 13 de novembro de 2013, representantes do Ministério Público e policiais civis realizaram uma fiscalização em uma oficina de costura no bairro do Bom Retiro, tradicional centro de confecções têxteis da cidade de São Paulo.
Imigrantes paraguaios e bolivianos trabalhavam no local, que também servia de residência — no quarto da família de origem boliviana havia apenas uma cama, em que dormia o casal e duas crianças. “As condições de trabalho, saúde e segurança eram péssimas: instalação elétrica em más condições e material altamente inflamável sem a devida segurança. Na única janela existente e que tinha visibilidade para a rua, havia um pano cobrindo a vista”, diz o processo. Os auditores verificaram que a oficina produzia exclusivamente para a marca M.Officer, com a presença de peças-piloto responsáveis por servir como modelo a ser reproduzido pelos trabalhadores. Os imigrantes tinham uma jornada diária que se iniciava às 7 horas e se estendia até às 22 horas, e eram remunerados de acordo com a produção das peças, recebendo R$ 850 por mês, em média.
Após a M.Officer negar sua relação com a oficina, o Ministério Público continuou a investigação e, em 6 de maio de 2014, realizou uma auditoria na Vila Santa Inês, bairro da periferia de São Paulo. Em um imóvel aparentemente residencial, seis bolivianos trabalhavam em condições semelhantes às da primeira inspeção — os auditores apreenderam duas peças-piloto da marca, um blazer e uma calça, que possuíam ficha técnica com instruções sobre medidas, tamanho e técnica do corte.
Os agentes públicos encontraram documentos com particularidades no contrato: peças sujas teriam desconto de R$ 1, enquanto costuras erradas receberiam a penalização de R$ 0,50 por peça. A marca encomendou a produção de 331 calças a uma fornecedora, pagando o valor unitário de R$ 52. Essa empresa terceirizou o trabalho para a oficina da Vila Santa Inês, com um pagamento de R$ 13 pelo serviço — deste valor, apenas um terço era destinado aos funcionários.
Cada trabalhador produzia de 110 a 190 unidades por mês e a remuneração era feita apenas no momento em que a encomenda era paga, o que podia demorar mais de um mês. Para pagar as contas, os imigrantes recorriam a vales feitos com o dono da oficina, em que os valores eram anotados e descontados de seus ganhos. O processo protocolado pelo Ministério Público do Trabalho ainda corre na Justiça brasileira, sem previsão para uma conclusão. Procurada pela reportagem por meio de sua assessoria de imprensa, a M.Officer não se pronunciou até o fechamento desta edição.
Se em Bangladesh a força de trabalho é composta de camponeses que são obrigados a sair do interior para a capital em busca de condições mínimas de sobrevivência, no Brasil ela é geralmente formada por imigrantes dos países vizinhos que vieram para cá pelo mesmo motivo. “Basta sair poucas horas de La Paz (capital da Bolívia) para encontrar comunidades sem energia”, diz João Paulo Cândia Veiga, professor do Instituto de Relações Internacionais da USP que realizou uma pesquisa com bolivianas que trabalhavam em oficinas de costura de São Paulo.
“Nas entrevistas, nos surpreendemos porque elas sabem que vão trabalhar muito e ganhar pouco, o que já é uma oportunidade que não teriam nos seus países de origem.” Como explica a professora Marcela Soares, da Universidade Federal Fluminense, com o aumento da mão de obra disponível por conta da globalização, há uma quantidade quase permanente de pessoas dispostas a vender sua força de trabalho por salários baixíssimos.
As contradições da cadeia produtiva de roupas no Brasil, no entanto, não estão restritas ao momento da confecção das peças (confira o quadro na página 45): com um volume colhido de 1,4 milhão de toneladas em 2015, o país é um dos cinco maiores produtores de algodão do mundo. E o cultivo de algodão é um dos que mais utiliza agrotóxicos para combate de pragas. “O trabalhador rural que realiza a sinalização para a aplicação do veneno é exposto com a pulverização das substâncias”, diz Elias D’Angelo, secretário da Confederação Nacional dos Trabalhadores da Agricultura, que na infância trabalhou na colheita manual do algodão em plantações de Goiás.
Além dos problemas de saúde ocasionados pelo contato com os agrotóxicos, muitas vezes os trabalhadores são expostos a condições de trabalho escravo: em 2009, oMinistério do Trabalho e Empregoinspecionou uma fazenda na Bahia em que os camponeses recebiam um salário mensal de pouco mais de R$ 450 e eram submetidos a jornadas de trabalho superiores a 10 horas. A colheita do algodão é conhecida por requerer grande esforço físico da mão de obra. “Temos quase 60% de trabalhadores informais no campo, quase o dobro do número registrado nas cidades, e essa informalidade possibilita a entrada para o trabalho escravo”, afirma D’Angelo. “Essas pessoas têm pouca escolaridade e costumam ser bem pobres: muitas vezes são escravos e não sabem de sua condição.”
De acordo com dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT), quase 21 milhões de pessoas no mundo estão expostas a trabalhos forçados. Das vítimas, 11,5 milhões são mulheres. “Não há um consenso definido sobre o conceito de exploração do trabalho, mas podemos dizer que ele está presente em todos os setores da economia”, diz Hans Von Rohland, porta-voz da OIT.
O Brasil só reconheceu que ainda abrigava casos de escravidão contemporânea em 1995 (!) e, desde então, resgatou mais de 50 mil trabalhadores expostos a essas condições. Mas sabe aquela nossa legislação elogiada por conta da abrangência de caracterização do trabalho escravo? Pois ela está em risco, graças a um projeto de autoria do senador Romero Jucá (PMDB/RR), que pretende retirar as caracterizações de “condições degradantes de trabalho” e “jornada exaustiva” como atributos capazes de identificar a exploração de trabalhadores.
“Esse projeto mostra um brutal retrocesso, em que se leva em conta apenas a liberdade e não a dignidade”, diz o procurador do trabalho Rafael Garcia Rodrigues. O Ministério Público, o governo federal e diferentes organizações de direitos humanos são contrários ao projeto de lei, que ainda não tem previsão de ser votado no Congresso Nacional.
Para que casos como o da Zara ou o da M.Officer não se repitam no país, a Associação Brasileira do Varejo Têxtil desenvolveu um projeto para monitorar os fornecedores responsáveis pela fabricação das peças de roupas para as grandes marcas. Até agora, quase 8 mil empresas estão cadastradas no programa e mais de 5,2 mil auditorias foram realizadas em 2015.
Um número tímido se comparado às dezenas de milhares de confecções existentes em todo o território nacional, mas uma iniciativa importante para que as redes varejistas não contratem oficinas terceirizadas envolvidas com a exploração de trabalhadores. “Ganhar dinheiro não está errado, desde que isso seja obtido sem transgredir a ética”, afirma Isabella Prata, daEscola São Paulo.
O direito à liberdade dos seres humanos, afinal, não pode ser quantificado por valor algum de mercado.
Em janeiro, informações dilvulgadas pela ONG britânicaOxfam indicaram uma tendência dos últimos anos: as 62 pessoas mais ricas do mundo somam fortunas estimadas em US$ 1,7 trilhão de dólares, o equivalente a todo o dinheiro acumulado pelos 3,6 bilhões de pessoas mais pobres do mundo. A organização afirmou ainda que 1% da população mundial possuía o mesmo patrimônio do que 99% do restante do planeta.“A desigualdade social é um reflexo direto da exploração do trabalho assalariado”, afirma o professor Ruy Braga, doInstituto de Sociologia da USP. “Uma parcela significativamente menor da riqueza social é distribuída aos trabalhadores.” O dono da Zara e seu potencial guarda--roupa com 2 bilhões de peças que o diga...
Você acompanha as denúncias e investigações feitas contra as marcas, se solidariza com as pessoas que têm uma jornada de trabalho extenuante e até fica chocado com histórias de trabalhadores resgatados em situações análogas à escravidão.
Mas por que então não consegue mudar seus hábitos de consumo e ajudar a reverter essa situação? Para o psicólogo Luciano Sewaybricker, autor de uma dissertação de mestrado pelaUniversidade de São Paulo sobre o conceito de felicidade em um mundo pós-moderno, o sistema econômico motiva as pessoas a pensar de maneira mais individual. “Os laços com as pessoas se tornam mais frágeis e você não consegue pensar em uma mudança, se sente impotente e vê que seu poder de mudança é ínfimo”, afirma.
Um primeiro passo para fazer a diferença nesse caso é escolher com qual roupa você sairá de casa. “Quando o consumidor tem acesso a informações, ele se torna mais responsável e escolhe para qual marca quer dar seu dinheiro”, diz Eloisa Artuso, uma das organizadoras brasileiras do Fashion Revolution, organização presente em 83 países que trabalha com a conscientização do consumo da moda.
Em fevereiro deste ano, a entidade montou uma instalação na Avenida Paulista, em São Paulo, com uma vitrine repleta de promoções. Ao entrar para conferir os produtos, os visitantes se deparavam com uma confecção de roupas barulhenta, abafada e que exibia um vídeo sobre os impactos da cadeia produtiva da moda.
“Algumas pessoas falam ‘sei que esse problema acontece, mas o que posso fazer? É culpa do governo, da mídia, de todo mundo, menos minha’. Mas a realidade é que todos temos responsabilidade nessa questão”, diz Fernanda Simon, também coordenadora do Fashion Revolution.
Além do papel exercido pelos consumidores, profissionais da indústria da moda pensam em alternativas à lógica da fast fashion, resgatando o poder cultural da criação de novas roupas. “O consumo continuará a existir, mas com uma conscientização cada vez maior de que não há necessidade de comprar de maneira descontrolada”, afirma João Braga, professor da Faculdade Santa Marcelina. “A moda acompanha o espírito de uma época e tem o poder de persuasão para também realizar mudanças.”
Agora começam a surgir em várias partes do mundo projetos que priorizam as produções locais, fabricam itens com matérias-primas sustentáveis, monitoram as cadeias de confecção e oferecem alternativas para que o bem-estar de vestir uma roupa nova não seja manchado pela exploração dos trabalhadores envolvidos na fabricação da peça. Afinal, como você pode ver no guia a seguir, proporcionar condições de trabalho dignas para todos os envolvidos no processo de produção é tarefa que, definitivamente, não sairá da moda.
NA ESTICA
PEOPLE TREE: Presente em 20 países, a empresa criada em 1991 no Japão estabelece parcerias com agricultores e artesãos para produzir roupas fabricadas com algodão orgânico e oferecem uma justa remuneração aos trabalhadores das confecções. A britânica Safia Minney, fundadora da empresa, visita periodicamente os locais de trabalho e incentiva a organização dos trabalhadores a realizar projetos que empoderem a mão de obra, formada principalmente por mulheres.
SVETLANA: A marca carioca, que não utiliza produtos de origem animal em sua linha de roupas, foi idealizada pela estilista Mariana Iacia após um estágio com a britânica Stella McCartney, reconhecida internacionalmente pela indústria da moda por desenvolver peças criadas com matérias--primas sustentáveis.
MEUS 3 PONTOS: Destinada ao público feminino, com peças que variam de R$ 20 a R$ 80, a marca foi criada em 2006 por uma parceria entre Nilsa Schneider e sua filha, Anelie. Resgatando o modo artesanal de confeccionar roupas, a empresa tem quase 20 mil fãs em sua página no Facebook e vende os produtos em lojas de comércio colaborativo.
INSECTA: Criada na cidade de Porto Alegre, em 2014, a empresa fabrica sapatos utilizando tecidos de roupas encontradas em brechós ou materiais que seriam descartados por confecções. O solado é feito de borracha reciclada e o produto é tingido com substâncias produzidas à base de água. “A indústria da moda sustentável tem o estigma de estar associada a produtos feios, mas modificamos esse conceito ao criar sapatos que as pessoas sintam orgulho de usar”, afirma Bárbara Mattivy, uma das fundadoras da marca.
VERT: Uma empresa francesa com espírito brasileiro: criada em 2005, a marca de calçados utiliza algodão orgânico cultivado no Ceará, borracha extraída na Amazônia por uma cooperativa de seringueiros e couro vegetal processado no Rio Grande do Sul. “Achamos muito cínica a atitude das empresas europeias, que cobravam auditorias criteriosas, mas fechavam os olhos sobre as condições de vida dos trabalhadores”, afirma o francês François Morillion, um dos fundadores da Vert.
Escolher a próxima roupa que estará em seu guarda-roupa é uma ferramenta mais poderosa do que você pensa. Afinal, caso os consumidores não deem mais dinheiro para marcas que exploram trabalhadores, aumentam as chances de toda a cadeia de produção da moda sofrer transformações positivas. “Quando os consumidores exigem maior transparência da indústria, as marcas também são obrigadas a dar uma resposta sobre o que está por trás da produção”, ressalta Eloisa Artuso, do Fashion Revolution.
A pressão exercida pelos consumidores já apresenta resultados: empresa global de fast fashion, a sueca H&M anunciou no ano passado que a preocupação em fabricar roupas de maneira ética se tornaria a nova prioridade para a companhia, prometendo garantir salários justos para os trabalhadores de confecções terceirizadas até 2018, além de produzir roupas com algodão sustentável até 2020. Além da conscientização do consumo, outras iniciativas ajudam a repensar a indústria da moda.
SEU BOLSO É O SEU PODER
BUY ME ONCE: A britânica Tara Button, 33 anos, criou uma loja virtual que vende produtos de beleza e roupas fabricadas com materiais de alta durabilidade. Uma calça jeans vendida na loja virtual da empresa, por exemplo, custa US$ 341, enquanto uma peça na rede de varejo H&M sai por U$ 20. A diferença de preços, no entanto, é recompensada a longo prazo, já que o consumidor não precisará voltar à loja para substituir uma roupa desgastada após algumas (poucas) utilizações.
ROUPATECA: Lançada em São Paulo, em 2015, a iniciativa é uma espécie de Netflix da moda: o consumidor pode escolher três planos mensais, de R$ 100, R$ 200 ou R$ 300, que dão direito a retirar uma quantidade de roupas — uma, três ou seis peças. O assinante pode trocar os produtos todos os dias. “Pesquisamos sobre novas formas de consumo da moda e chegamos ao formato da biblioteca de roupas, que já acontece em alguns lugares da Europa”, revela Daniela Ribeiro, uma das criadoras do projeto, que ainda está em versão de testes e disponibiliza mais de 450 peças no acervo.
ROUPA LIVRE: Com o objetivo de estender a vida útil das roupas, a organização conta com um mapa colaborativo em seu site (roupalivre.com.br) para que os usuários identifiquem onde é possível encontrar brechós ou locais para doações, além de indicação de costureiras e cursos sobre moda consciente. Em dezembro, a organização arrecadou quase R$ 26 mil em um financiamento coletivo para o desenvolvimento de um aplicativo para troca de roupas.
GUIA DE COMPRAS
1. INFORMAÇÃO
Antes de sair para comprar uma nova roupa, confira se as empresas de varejo estão envolvidas com exploração da mão de obra por meio de serviços como o aplicativo Moda Livre
2. UTLIDADE
Em quais ocasiões você vestirá aquela camisa da vitrine? Perguntas como essa ajudam a avaliar se a sua próxima compra terá uma boa utilidade, além de frear possíveis impulsos de consumo
3. QUALIDADE
Verifique as matérias-primas utilizadas na produção do tecido e busque informações sobre a satisfação dos clientes em questões como conforto e durabilidade
4. ECONOMIA
Caso tenha de vestir uma roupa para uma ocasião especial, mas que dificilmente será utilizada em outras situações, pense na possibilidade de alugar a peça ou pedir aquele empréstimo camarada a seus amigos
5. MAIS OPÇÕES
Dê uma olhada em roupas feitas em produções locais, de maneira mais artesenal: o preço e a qualidade são tão bons quanto os encontrados nas grandes redes de varejo
MODA LIVRE: Desenvolvido pela organização Repórter Brasil, que realiza um trabalho jornalístico de combate ao trabalho escravo, o aplicativo para iOS e Android monitora 45 marcas de varejo que vendem seus produtos no Brasil. O serviço, no ar desde 2013, informa se a empresa esteve envolvida em casos de exploração de mão de obra, além de avaliar a política de transparência e as medidas adotadas pelas companhias para fiscalizar as confecções que produzem suas roupas.
“As redes varejistas costumam falar da responsabilidade social, mas eles também têm uma responsabilidade legal por aquilo que geram aos trabalhadores”, diz André Campos, membro do Repórter Brasil e um dos desenvolvedores do serviço.
Fonte: Revista Galileu