O debate em torno da idéia de uma “moda brasileira” é travado, como mínimo, desde os anos 20 do século passado quando as indústrias têxteis brasileiras nivelaram-se tecnicamente em relação às européias e às americanas, no sentido de capacitarem-se para a produção de tecidos concorrentes, o que supõe a produção de bens equivalentes com preço competitivo. Devido às características climáticas e culturais que nos diferem do sistema de criação-produção-consumo de moda europeu, personalidades atuantes no setor, como os editores das revistas de moda e os dirigentes das indústrias têxteis, passaram a questionar implicitamente se deveríamos continuar a seguir, em termos de indumentária, as referências estéticas estrangeiras que chegavam até nós pelo cinema e pelas revistas e, além disso, também pelo amplo e legitimado discurso de bom gosto e elegância constituído na Europa e, alguns anos mais tarde, nos Estados Unidos da América.
A pesquisa histórica exploratória demonstra que essa insatisfação surgiu no seio da indústria têxtil e, portanto, tratou-se muito mais de uma ação que visava à proteção econômica do setor do que um pleito pelo direito à “expressividade” nacional por meio das roupas. Essa preocupação, no entanto, aconteceu em momento oportuno quando a defesa pela industrialização e pelo emprego alinhou-se com as preocupações da arte no período que, de modo mais evidente desde a Semana de 22, também buscava seu próprio caminho e se opunha aos modelos estrangeiros.
No período de instalação e desenvolvimento inicial das indústrias têxteis e do vestuário, destacaram-se ações comerciais em direção a uma pretensa “moda brasileira” por meio de um aprimoramento técnico que via a cópia como etapa inerente ao processo criativo. Um exemplo para comprovar essa prática diz respeito à Casa Canadá que, desde os anos 1930, trazia roupas femininas diretamente de Paris e reproduzia duas ou três réplicas de cada modelo.
Esse tipo de atuação foi motivado por um desenvolvimento tecnológico interno que tornara o país preparado para a produção de têxteis. Ao não haver, no entanto, nenhuma trajetória cultural que adubasse a criação, não nos libertamos dos padrões da estética européia e, muito pelo contrário, ela se tornou referência absoluta quando avançamos na industrialização de têxteis e de roupas, notadamente a partir de 1920. A cópia adaptada climaticamente marcou o destino estético de praticamente todas as casas de prêt-à-porter que surgiram no período e ofereciam não só roupas, mas também um ambiente cenográfico (desfiles, concursos, campanhas publicitárias etc.), ideal para a solidificação desse comportamento, muito semelhante ao modelo europeu.
Em paralelo a esse tipo de atuação, no mesmo período, surge um dos primeiros exemplos de estetização alegórica do Brasil na forma de roupas, que é potencializado pelo sucesso no exterior: Carmem Miranda. Seu figurino, idealizado por Alceu Penna (1911-1980), levava as frutas e os balangandãs brasileiros para fora de nossas fronteiras, ajudando a criar midiaticamente uma idéia de estética tropical que coincidia com tudo aquilo que foi representação do Brasil desde o seu descobrimento.
Carmem Miranda, devido à sua posição de celebridade, ocupou e ainda ocupa ocasionalmente o papel de estética genuína em moda brasileira, mas não tem papel preponderante neste debate. O fato em análise está desvinculado de qualquer indivíduo, e parece ser justamente o ponto nevrálgico do confronto de idéias, pois dá indícios da presença na constituição da imagem visual da brasilidade, tanto de aspectos relacionados à estratégia empresarial e midiática
que pretendiam fazer deslanchar a “moda brasileira”, quanto da sua inserção no campo da arte, cujas ações pioneiras foram empreendidas por Pietro Maria Bardi. Em ambos os casos fala-se do período 1940-1970. Em maio de 1952, Prof. Bardi, o então Diretor do Museu de Arte (atual MASP), endereçou carta ao Dr. Alberto Alves Lima, diretor da Casa Anglo Brasileira ( Mappin), solicitando patrocínio para a realização de um evento que contribuísse para a constituição e o estímulo de uma “moda brasileira”. Buscava, com essa iniciativa, o apoio técnico e em materiais para a realização de um desfile de roupas inteiramente idealizadas e confeccionadas dentro do próprio museu, que possuía uma seção “reservada ao estudo e à realização de modelos com a
finalidade de permitir uma segura afirmação da moda brasileira”.
Essa proposta em direção à invenção 4 da “moda brasileira” iniciou-se por um convite feito por Bardi aos artistas Sambonet, Caribé e Burle Marx para a criação de estampas e peças “com o propósito de incrementar o estudo e o desenvolvimento da moda”. Bardi pretendia demonstrar a possibilidade de revelar na moda aqui produzida “aspectos vivos da nossa cultura”, além de “estimular a autonomia da nossa moda como expressão das reais necessidades populares”, ainda que, como se sabe, a Mappin Store estava muito mais voltada para as mulheres de classe média e alta ou para a “mulher moderna”.
A apresentação da coleção aconteceu em novembro de 1952. O desfile, apresentado por moças oriundas de uma escola de manequins que funcionava
no próprio museu, trouxe à cena cinqüenta modelos de roupas cujos nomes relacionavam-se a cidades, animais, alimentos ou produtos brasileiros, como perequê, jacaré, ararauna, confetis, foguete, Iguaçu, fronteira e outros. Ainda que a acolhida dessa proposta tenha sido favorável por toda a imprensa que finalmente apontava “a democratização da moda” e a sua libertação dos padrões europeus, Bardi, anos mais tarde, declarou que o projeto “não deu certo”, muito possivelmente porque ainda percebia que a moda continuou a guiar-se, em grande medida, por padrões estrangeiros.
As idéias de um país eternamente exótico também foram reformuladas (ou aproveitadas) no transcorrer dos anos 1960 pela empresa de fios sintéticos Rhodia, numa associação da arte brasileira à sua matéria prima. A empresa planejou uma ação de marketing integrada, na qual o fabricante desses fios custeava as publicidades das tecelagens que exibiam o selo da marca, expondo padrões de artistas e modelos criados por estilistas brasileiros. Em associação com a companhia aérea VARIG e a Revista Cruzeiro, a Rhodia levava as criações nacionais para serem desfiladas na Europa, nos Estados Unidos e até no Japão.
As suas principais coleções anuais e artistas convidados foram:
- Em 1962: Brazilian Nature por Livio Abramo;
- Em 1963: Brazilian Look por Heitor dos Prazeres;
- Em 1964: Brazilian Style, Aldemir Martins;
- Em 1965: Brazilian Primitive por Isabel Pons;
- Em 1966: Brazilian Fashion Team por Hércules Barsotti;
- Em 1967: Brazilian Fashion Follies por Willy de Castro.
Além dessas criações, a empresa investiu em uma estratégia de marketing igualmente associada à produção cultural local. No final da década, a temática tropicalista foi mote para a organização em 1968 e em 1969 de shows-desfiles comandados por nossos tropicalistas, que promoviam a utilização dos fios sintéticos por meio da associação de artistas e estilistas brasileiros às indústrias têxteis.
A partir dos anos 1970, a idéia da “moda brasileira” traduzida somente em imagens adquire conotação quase folclórica. Mesmo no trabalho realizado por Zuzu Angel (1921-1976), verifica-se um vínculo de criação intrinsecamente relacionada com representações do país, quando se sabe que essa adjetivação é extremamente limitada por não levar em consideração, também, os processos de produção, comércio/circulação e uso. Fazendo uso somente dos atributos estéticos, tornou-se possível produzir “moda brasileira” desde qualquer lugar do globo.
Desse modo, condenada a uma constituição que se restringiu quase unicamente à linguagem visual, continuamos presos (dados apurados em pesquisa exploratória que indicam que a moda brasileira é vista, por vezes, como produção da cultura popular), de modo mais evidente depois do tropicalismo, a ver a moda ou a temática autodenominada brasileira impregnada de signos alegóricos. Assim, durante um longo período, a idéia de “moda brasileira” resumiu-se à utilização de cores primárias e secundárias, traços simplificados de ferramentas artesanais que resgatam a representação da natureza tropical, adornos com sementes, contas, conchas, penas ou escamas.Também estão sempre presentes formas reveladoras curtas ou decotadas, esvoaçantes, entreabertas etc., com aspectos finalizadores do feito e acabados à mão, como amarrados, desfiados, tintos desuniformemente e assim por diante. Lembram-nos, constantemente, da nossa nudez indígena que deixou perplexos nossos “descobridores”.